VLADIMIR CARVALHO, 79.
Vladimir não caminha pelas calçadas da W3 à toa.
Ele tem um plano. Observa com cuidado a vida nas ruas. Faz mais de 40 anos,
decidiu que ficaria em Brasília para acompanhar a História do país por dentro.
Desde sempre, habita o trecho entre a 703 e a 710 Sul. Às vezes, genuíno
flâneur, segue até a Rodoviária, vai ao CONIC.
Vladimir não dirige. Nunca.
Prefere andar. Vê as pessoas, ouve conversas. A vida da cidade se construindo
diante dele, o espetáculo do caos, a luz do sol nascendo e a luz horizontal do
fim de tarde, incandescente, batendo na lente dos seus óculos. Proponho uma
foto sem óculos. “Não me reconheço sem óculos.”
De certa forma, o modo como vemos Brasília é
resultado do modo como Vladimir mostrou Brasília pra gente. Ele é o homem que
interpreta os acontecimentos, é quem traduz a cidade para os moradores.
Muitas vezes Vladimir observa a cidade com uma
câmera. A lente da câmera. Não se reconhece Vladimir sem lentes. A luz. As
manifestações dos estudantes à frente do Palácio do Buriti, a marcha histórica
dos trabalhadores do campo, os índios acampados no Congresso Nacional, a
resistência da democracia na UnB, os primeiros solos de guitarra nas ruas, o
retorno do ídolo e a relação-turbilhão com os fãs, a revolta do criador Niemeyer
diante da questão sobre os operários mortos.
Vladimir filmou quase tudo. Guarda as imagens
porque sabe que são importantes. Consciente do desenrolar da História. Muitas
viraram filme. Outras estão guardadas. Esperam o momento de se revelar. Na sua
casa da 703 Sul há mais do que imagens guardadas. Há uma memória coletiva. Tudo
foi doado à UnB. Inclusive a casa. “Só pedi que me deixassem morar aqui até o
fim.” É uma retribuição à cidade.
Vladimir veio a Brasília em 1969 porque o seu
filme A Bolandeira foi selecionado
para o festival de cinema daquele ano. “Cheguei numa estação chuvosa de
novembro e achei a cidade fria. Fazia frio mesmo, chovia, mas também porque era
o início ainda. Tudo começava.” Vladimir ficou hospedado no Hotel Nacional e
desceu até a Rodoviária. “Naquele momento Brasília me pareceu uma cidade
estranha.” Mas então foi convidado a montar na UnB um núcleo de documentários.
Ficaria como professor por dois meses.
Depois veio o convite para ser professor
contratado. Veio também a história da invasão da UnB pelos militares. Havia
também a história dos operários mortos durante a construção. Buscava as pessoas
para gravar depoimentos. Ninguém queria falar, era época de repressão. Decidiu
então que tinha que fazer cinema em Brasília. Pressentiu que a História
política do país iria se desenrolar nas praças e ruas estranhas daquela
cidade-enigma. A partir daí ele fez cerca de 15 filmes, incluídos os que podem
ser compreendidos como a trilogia de Brasília: Conterrâneos, Barra 68 e Rock
Brasília. A construção, a resistência e a celebração.
Por isso caminha pela cidade. Por isso filma tudo.
Sempre na tentativa de desvendar o mistério que levita invisível por aí, e
desafia. Não descobriu todo o segredo. Mas essa convivência intensa por dentro
dos momentos mais traumáticos da cidade, e também dos mais transcendentes,
ligou Vladimir a Brasília por laços viscerais. Ele foi compreendendo a cidade à
medida que foi filmando, mergulhando na sua história. “Você não vive 43 anos no
mesmo lugar impunemente. Tenho hoje um vínculo amoroso com Brasília.”
Professor emérito da UnB, cidadão honorário da
cidade e outros tantos títulos de honra são reconhecimentos formais. O calor
afetivo da gratidão ele sente mesmo em momentos como o da apresentação do Rock Brasília, de graça, no Festival de
Cinema de 2011. Quase três mil pessoas abarrotadas pelos corredores e
escadarias do memorável Cine Brasília. E uma ansiedade incontrolável de se ver
na tela, de rever os lugares-mito que não existem mais, de reviver a História.
Antes havia a saudade de um tempo, mas na
tentativa de recordar, não havia imagem na memória. Vladimir criou o
imaginário. Uma noite extraordinária. Bem ali, na 106 sul, pertinho da casa
dele.