segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

RETRATO 3


RILDO DIAS, 51.

Há uma espécie de peixe que vive nas profundezas das águas doces do Rio Negro. Uma vez por ano ele sobe a 20 metros da superfície, é o mais próximo que chega da luz do sol. Nesse período, um tipo de mergulhador especializado entra no rio com a missão de capturar esse peixe, adorado por colecionadores. Na época em que morava na Amazônia, Rildo era um desses mergulhadores.
Peixe de aquário foi uma das três grandes paixões que conduziram a vida de Rildo Dias até Brasília. Ele nasceu no Maranhão mas antes de completar um ano já morava no Rio de Janeiro. Aos 19 parou para ajudar a desmontar a lona de um circo, próximo à Central do Brasil, e acabou seguindo viagem com a trupe. Logo iria compor a banda que tocava ao vivo, substituindo o antigo baterista. Foi o primeiro contato profissional com a sua primeira e mais fiel paixão: a música.

Depois de se apresentar em Belém do Pará, o grupo seguiu para a Guiana Francesa, mas como Rildo viajava sem autorização dos pais, o dono do circo não arriscou sair do país com ele. Foi uma profunda decepção. A Guiana Francesa passaria a ser lembrada como um desejo não realizado. Até que bem mais tarde, em Fortaleza, ele aceitaria o desafio de seguir numa travessia de seis meses em barco a vela, como cozinheiro. O destino: a Guiana Francesa. Mas isso é outra história.
O fato é que Rildo ficou no Norte, casou, teve filhos e integrou bandas de diferentes ritmos. Até que sua mulher morreu. E diante da possibilidade de ver os netos criados apenas pelo pai, o sogro fez uma proposta. “Como eu era meio maluco, eles sugeriram ficar com os meninos e eu poderia seguir viagem por aí. Achei sensato e aceitei. São pessoas mais corretas, todos daquela igreja... como chama?!”

Então Rildo acaba chegando a Diamantina, Minas Gerais, e alguém lhe apresenta  a sua terceira paixão: os diamantes. Foi por causa dela que Rildo veio parar em Brasília, representando uma empresa mineira. Isso faz seis anos. De lá pra cá, Rildo divide o tempo entre o comércio de diamantes e a música.
As duas atividades acontecem no CONIC. “São lá que estão meus amigos, meus contatos.” Acredita que em Brasília encontrou o melhor lugar para trabalhar, além de ótimas companhias. “Brasília é uma cidade acolhedora. Só lamento que o Estado permita que tanta gente viva nas ruas, completamente dependente das drogas. Vejo isso de perto.”

No dia 1° de janeiro de 2013, Rildo completou 51 anos. Entre os seus planos está a gravação de um CD e a realização de um sonho: construir uma casa numa remota ilha do Maranhão. "Vai ser a minha aldeia. Vou levar os filhos com as novas famílias e a minha nova esposa (que por enquanto mora em Rondônia)". Se o destino se cumprir, o andarilho descansará no mesmo berço onde nasceu.

RETRATO 2


ÍTALA DE SOUSA, 30.

Sua mãe arruma o seu cabelo, confere o vestido novo por todos os lados, depois segura sua cabeça com as duas mãos e repete ansiosa as recomendações: silêncio, modos, não responda. A menina tem quinze anos, um bebê recém-nascido e a obrigação de não assustar a família do Lago Sul, com quem tem entrevista marcada para um emprego.

No caminho entre São Sebastião e a casa do ex-governador, Ítala se dá conta de que refaz os passos da mãe: acaba de sair de Salvador grávida para tentar mudar a vida em Brasília, como doméstica. Arrepende-se da lembrança na hora, porque agora chegará ainda mais triste na casa da patroa, mesmo assim acaba cedendo de vez à memória dos pequenos traumas.

Primeiro a avó. Um dia, por volta dos cinco anos, ela escuta a avó comentar que os caminhoneiros deviam ser pais muito ausentes, porque vivem viajando. A partir daí, a festa do dia dos pais na escola passou a ser mais curta, porque começava com o deboche dos colegas que, protegidos nos braços dos seus, apontavam pra ela sozinha, e terminava com o seu desabafo: “Olha aqui, o meu pai é caminhoneiro!”.

Depois vem o pai. Ela tinha oito anos e sua mãe tentou aproximá-la de um pai desconhecido e arredio. Ele era um oficial de justiça, tinha uma situação financeira melhor, mas desprezava a filha. A menina aguardaria sem pressa o aniversário de 21 anos, quando então conheceria uma Defensoria Pública e abriria um processo judicial contra ele. Mas naquele ônibus isso ainda não passava de um plano.

Ítala desce num ponto e anda pelas quadras do Lago Sul um tanto perdida, não se entende com os códigos das placas de Brasília. Um carro reduz a velocidade para entrar na rua, ela se aproxima pela porta do passageiro e pergunta ao motorista onde fica. Mas sua pergunta é interrompida pela janela que se fecha sem pressa porque o automático não é acionado pela impaciência do homem ao volante. O carro segue o seu caminho.

Como uma peça erguida pelo jogador num tabuleiro de xadrez, em que todos os quadrados são iguais, ela é colocada de repente e sem saber como no endereço certo. Seu rosto toca a grade de ferro cinza e frio, olha desconfiada e percebe um movimento no terraço, mas só depois que já criou coragem para tocar a campainha, entende que é o motorista do carro que está lá dentro. Com o sinal sonoro, seus olhares se reencontram. Xeque! Uma voz de mulher grita "quem é" e o homem responde alto, muito mais para a pessoa de fora que para a de dentro: “Ninguém. É só uma neguinha querendo esmola”.

Era o ex-governador. A ex-primeira-dama, se é assim, aparece e finge que não ouviu o marido, ou que aquilo não tinha importância. Mas a neguinha, que tentava não incomodar, tenta agora não existir, mãos que apertam a grade de ferro, começa a suar, fica trêmula, chora pra dentro e pensa na mãe. Por isso entra, escuta, baixa a cabeça e vai embora.

Ítala conta o caso para a mãe, que agora recomenda esquecer o assunto porque afinal a ex-primeira-dama é amiga da freira do Convento das Carmelitas, onde ela trabalha, e de onde vem o único salário-mínimo que entra naquela casa.

Muito tempo passou. Dez anos talvez. Ítala começou uma faculdade de administração, conseguiu um estágio em um órgão federal, matriculou o filho em um colégio particular, processou o pai e passou a frequentar as oficinas de uma ONG internacional de cultura Rastafári em São Sebastião. 

É provável que em algum um curto minuto desses anos, moldada por episódios sutis de preconceito mas também por muitas alegrias, Ítala tenha parado para localizar na memória o momento exato em que mudou. Porque ela mudou. Algo como uma transformação centrada numa autoestima reveladora do seu poder. Talvez tenha sido o  exemplo da liderança de Zumbi, ou a primeira vez que viu os discursos de Martin Luther King e Malcolm X, que falavam em inglês, mas que tinham naquela expressão e no punho erguido uma mensagem universal de resistência. Talvez a mensagem clara e alegre de Bob Marley: "Levante e lute!" Sim, a música tem mais a ver com ela.

Ítala usava roupas coloridas e um penteado Rastafári caprichado quando reencontrou por acaso o ex-governador. Era um aniversário no Convento das Carmelitas, e, entre os convidados, a ex-primeira-dama, curiosa ou incomodada, quis saber quem era ela. Ítala chegou bem perto para não perder o momento do choque nos olhos da mulher, e respondeu sem piscar que era aquela neguinha que o ex-governador havia humilhado. Depois que confirmou as sobrancelhas arqueando, as pupilas dilatando e o queixo num movimento lento em direção ao chão, se retirou do recinto porque tinha um orgulho a defender.

Sua mãe não perdeu o emprego, a essa altura já tinha certificado de técnica de enfermagem e a freira dependia dela.

Para Ítala, a Torre de TV se tornou um lugar especial de Brasília desde que ela levou o filho para passear pela cidade e viu como ele se impressionou com o lugar. Mas ela gosta mesmo é de água, e olhando o Lago Paranoá sempre que faz sua travessia diária de São Sebastião para o Plano Piloto, pela Ponte JK, Ítala deseja profundamente estar perto do mar.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

RETRATO 1



LENIR DE LIMA, 50.

Lenir é uma figura grande. Vaga pelo Setor Bancário Sul com um saco de farinha pendurado pelas costas e um caminhar pesado e incerto, que entrega algum velho problema com os pés.

Para num corredor estreito ao lado do Banco do Brasil, colocando-se no meio da passagem, o saco agora jogado ao chão, mãos na cintura e cabeça erguida, assim como se tivesse alguma revelação profética a fazer, e a maré de pessoas que segue na sua direção é obrigada a se dividir na bifurcação do seu corpo. Todos desviam, ninguém dá dinheiro. Mas ele garante que, como acontece todos os dias, receberá o suficiente para passar a noite no hotel do Seu Barriga, de endereço impreciso, e ainda desfrutar de uma refeição. É assim desde 1994.

Lenir é um gigante que nasceu no meio do concreto há cinqüenta anos. Prefere a Brasília de hoje àquela do início “quando não tinha nada”. Seu pai era massagista em um clube de futebol e sua mãe foi ficando doente até desaparecer. Quando? Só lembra que foi na época de Bebeto e Romário, e, segundo ele, isso diz muita coisa. Discretamente sugere algo como uma máfia no futebol, responsável entre outras coisas pelo desaparecimento da mãe. O que importa é que depois disso algumas rupturas aconteceram, no cérebro e no coração.

As referências de Lenir são assim incomuns. Sabe que já viajou a São Paulo, mas não lembra como foi. Já trabalhou em fábricas, em canavial e esteve preso por bater numa pessoa. “Foram eles que mandaram.” Quem? “Esses da luz amarela que vivem tirando a paciência da gente.” E sua indignação atropela o absurdo e tudo parece ser de conhecimento geral. As vozes da luz amarela, ao que parece, levaram Lenir a freqüentar clínicas psiquiátricas. “Eles sabem que sou doente.” Ele, às vezes sabe, às vezes não.

Anuncia um Novo Brasil que está sendo construído em algum lugar “depois de Belém”. “Muitos já foram pra lá.” E você, Lenir, gostaria de sair de Brasília? “Brasília é uma cidade violenta, mas eu tenho que ficar aqui porque o dono do banco está me devendo uns documentos. Mas se pudesse eu gostaria de mudar para o meu próprio planeta, um que eu mesmo pudesse construir.”

Lenir não sabe, mas entre as jornadas pelo Setor Bancário Sul e as noites de sono no hotel do Seu Barriga, ele já vive um pouco no seu próprio mundo.