sábado, 20 de abril de 2013

RETRATO 7



VLADIMIR CARVALHO, 79.

Vladimir não caminha pelas calçadas da W3 à toa. Ele tem um plano. Observa com cuidado a vida nas ruas. Faz mais de 40 anos, decidiu que ficaria em Brasília para acompanhar a História do país por dentro. Desde sempre, habita o trecho entre a 703 e a 710 Sul. Às vezes, genuíno flâneur, segue até a Rodoviária, vai ao CONIC. 

Vladimir não dirige. Nunca. Prefere andar. Vê as pessoas, ouve conversas. A vida da cidade se construindo diante dele, o espetáculo do caos, a luz do sol nascendo e a luz horizontal do fim de tarde, incandescente, batendo na lente dos seus óculos. Proponho uma foto sem óculos. “Não me reconheço sem óculos.”

De certa forma, o modo como vemos Brasília é resultado do modo como Vladimir mostrou Brasília pra gente. Ele é o homem que interpreta os acontecimentos, é quem traduz a cidade para os moradores.

Muitas vezes Vladimir observa a cidade com uma câmera. A lente da câmera. Não se reconhece Vladimir sem lentes. A luz. As manifestações dos estudantes à frente do Palácio do Buriti, a marcha histórica dos trabalhadores do campo, os índios acampados no Congresso Nacional, a resistência da democracia na UnB, os primeiros solos de guitarra nas ruas, o retorno do ídolo e a relação-turbilhão com os fãs, a revolta do criador Niemeyer diante da questão sobre os operários mortos.

Vladimir filmou quase tudo. Guarda as imagens porque sabe que são importantes. Consciente do desenrolar da História. Muitas viraram filme. Outras estão guardadas. Esperam o momento de se revelar. Na sua casa da 703 Sul há mais do que imagens guardadas. Há uma memória coletiva. Tudo foi doado à UnB. Inclusive a casa. “Só pedi que me deixassem morar aqui até o fim.” É uma retribuição à cidade.

Vladimir veio a Brasília em 1969 porque o seu filme A Bolandeira foi selecionado para o festival de cinema daquele ano. “Cheguei numa estação chuvosa de novembro e achei a cidade fria. Fazia frio mesmo, chovia, mas também porque era o início ainda. Tudo começava.” Vladimir ficou hospedado no Hotel Nacional e desceu até a Rodoviária. “Naquele momento Brasília me pareceu uma cidade estranha.” Mas então foi convidado a montar na UnB um núcleo de documentários. Ficaria como professor por dois meses.

Depois veio o convite para ser professor contratado. Veio também a história da invasão da UnB pelos militares. Havia também a história dos operários mortos durante a construção. Buscava as pessoas para gravar depoimentos. Ninguém queria falar, era época de repressão. Decidiu então que tinha que fazer cinema em Brasília. Pressentiu que a História política do país iria se desenrolar nas praças e ruas estranhas daquela cidade-enigma. A partir daí ele fez cerca de 15 filmes, incluídos os que podem ser compreendidos como a trilogia de Brasília: Conterrâneos, Barra 68 e Rock Brasília. A construção, a resistência e a celebração.

Por isso caminha pela cidade. Por isso filma tudo. Sempre na tentativa de desvendar o mistério que levita invisível por aí, e desafia. Não descobriu todo o segredo. Mas essa convivência intensa por dentro d­­os momentos mais traumáticos da cidade, e também dos mais transcendentes, ligou Vladimir a Brasília por laços viscerais. Ele foi compreendendo a cidade à medida que foi filmando, mergulhando na sua história. “Você não vive 43 anos no mesmo lugar impunemente. Tenho hoje um vínculo amoroso com Brasília.”

Professor emérito da UnB, cidadão honorário da cidade e outros tantos títulos de honra são reconhecimentos formais. O calor afetivo da gratidão ele sente mesmo em momentos como o da apresentação do Rock Brasília, de graça, no Festival de Cinema de 2011. Quase três mil pessoas abarrotadas pelos corredores e escadarias do memorável Cine Brasília. E uma ansiedade incontrolável de se ver na tela, de rever os lugares-mito que não existem mais, de reviver a História.

Antes havia a saudade de um tempo, mas na tentativa de recordar, não havia imagem na memória. Vladimir criou o imaginário. Uma noite extraordinária. Bem ali, na 106 sul, pertinho da casa dele. 

quarta-feira, 20 de março de 2013

RETRATO 6


JOSÉ PERDIZ, 80.

E então, depois dos palhaços e dos malabaristas, começou o teatro. Na arquibancada de tábuas, o pequeno Perdiz gruda no pai e acompanha maravilhado os movimentos de um toureiro, que transforma o picadeiro do circo numa arena de sonhos. A peça é uma adaptação de Carmen, de Bizet, e no momento em que o herói morre e sobe pelas escadas para um céu imaginário, a criança se emociona.

Voltando para casa, aos nove anos, o menino sentia qualquer coisa parecida com uma grande transformação. “Meu pai nem imaginava o que tinha provocado. Sonhei com o teatro várias vezes. No sonho, minha vida se misturava com a vida dos personagens.”

Quase cinquenta anos se passaram sem qualquer contato com teatro. Até que em 1987, Perdiz recebe um pedido para montar uma peça na sua oficina, na 708/709 Norte.

“Comprem as tábuas e eu faço a arquibancada,” ele responde. Com certo atraso, Perdiz assistiria ao seu segundo espetáculo, Esperando Godot, de Beckett. De alguma forma se sentiu na velha arquibancada do circo de Araguari, em Minas.

Depois disso seguiram-se diversos espetáculos, festas, fortes amizades. O Teatro Oficina Perdiz se tornou espaço disputado por artistas e público. Até que interesses de construtoras na posse do terreno levaram a uma determinação de retirada da oficina.

Os espetáculos estão proibidos. Os últimos anos, Perdiz viveu esperando. É um tipo de espera que o machuca lentamente. Ver Perdiz na oficina hoje em dia é perceber, melancolicamente, que ele está e não está mais lá. Os amigos já não estão. Os clientes também não. Perdiz espera ao lado do seu assistente, mudo, e do seu cachorro Banzé. A arquibancada de tábuas já foi arrancada faz tempo e espera esquecida em qualquer lugar pelo dia da mudança.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

RETRATO 5


ALFREDO NASCIMENTO, 27.
Alfredo sabia que tinha que avisar à mãe do amigo. Mas com o telefone na mão, não sabia como dar a notícia.
Foi como um desencontro trágico, aquilo que marcou os últimos momentos da amizade entre Alfredo e Fabrício. Sem parentes em Brasília, costumavam se encontrar nos finais de semana. Mas Alfredo tinha sempre que insistir muito para convencer o amigo a sair de casa. “Ele era um cara triste, muito triste.”
Até que, surpreendentemente, Fabrício ligou num sábado antes do Natal. Convidou Alfredo para almoçar. Alfredo já tinha acertado com outras pessoas e pediu que Fabrício viesse junto. Ele não foi. No domingo foi Alfredo quem ligou. Fabrício disse que tinha que estudar. Mas depois ligou de volta e disse que estava em um restaurante. Mas Alfredo já estava em outro lugar. Deixaram pra lá. Mas antes de se despedir, confirmaram que passariam juntos a noite de Natal. Mesmo assim, na terça-feira, 20 de dezembro, Fabrício se matou.
Uma bala na cabeça e um bilhete de despedida: “Desculpa”, além de duas frases riscadas. Algumas coisas podem ser reparadas, outras não.
Ficaram então essas duas frases misteriosas que diziam qualquer coisa que, de acordo com a vontade do autor, não deveria mais ser dita. Há pessoas que passariam o resto da vida com esse bilhete nas mãos, concentrando todo o esforço dos seus dias na tentativa de descobrir a mensagem das letras por baixo daqueles riscos violentos.
Algo como um pedido de socorro que deveria ter sido feito, mas não foi. Em vez disso Fabrício encomendou um revólver. No dia em que a encomenda chegou, ele saiu para comprar munição, voltou para o quarto, sentou na beirada da cama e disparou uma bala na cabeça, por trás da orelha.
Veio a quarta-feira, 21 de dezembro, e o corpo de Fabrício permaneceu lá. Os amigos do trabalho estranharam a ausência dele, e como não conseguiam contato pelo celular, foram ao apartamento, na 711 Norte. No meio do impacto com o cenário de horror, tentaram se lembrar de alguém da família, mas eles não sabiam sequer da existência do amigo de juventude aqui em Brasília.
Um deles lembrou que a mãe de Fabrício trabalhava no Banco do Brasil. Ligaram para a agência de Feira de Santana. A mãe estava de férias. Mas o recado foi dado. Logo a notícia chegaria até Alfredo, percorrendo um caminho sinuoso que partia da Asa Norte, passava pela Bahia e chegava ao destino no Lago Norte, contradições típicas das pessoas que não compartilham suas vidas. Alfredo soube também que a mãe de Fabrício estava em Caldas Novas. Tinha planejado fazer uma surpresa para o filho e pretendia aparecer na noite de Natal.
Alfredo sabia que tinha que avisar à mãe do amigo. Mas com o telefone na mão, não sabia como dar a notícia.
Por fim, ligou. Quis ajudar em tudo que fosse preciso. E assim foi. Ela não sabia andar em Brasília, então ele foi esperá-la na entrada da cidade. Foram juntos à delegacia, organizaram o velório no cemitério da Asa Sul e providenciaram a cremação.
Durante os intervalos amargos dessa via sacra de procedimentos de praxe, Alfredo tomava conhecimento de detalhes dos quais nem desconfiava. Aquele que o deixou mais impressionado revelou que, todos os anos, Fabrício tirava férias no mês do seu aniversário dizendo que iria para Feira de Santana, mas nunca foi. Ficava sozinho em Brasília, com o celular desligado. Aliás, ele só voltara uma vez à sua cidade natal, desde que mudara para a capital, o que provocava certa mágoa na mãe.
Fabrício e Alfredo eram amigos da época de escola, em Feira de Santana, na Bahia. “A gente ia junto para o colégio, mas deu muito trabalho encontrar um assunto que despertasse algum interesse nele. Era muito calado.”
Depois entraram na mesma turma da faculdade de Direito em Salvador. Até que Fabrício passou em um concurso e veio para Brasília. Alfredo veio depois. “Lembro que perdi o avião, peguei um voo bem mais tarde e não consegui avisar nada pra ele. Mesmo assim, quando cheguei ao aeroporto à noite, no meio de uma grande chuva, ele estava me esperando.”
Depois do velório a mãe de Fabrício pediu um último favor: que a acompanhasse até a saída da cidade na direção de Salvador. Alfredo atendeu. Eles se despediram na estrada. À medida que a imagem do carro se desfazia no horizonte confuso do Cerrado, levando as cinzas de Fabrício de volta à Bahia, Alfredo se lembrava do dia em que chegou a Brasília e o amigo estava esperando por ele.
“Ele foi me buscar quando eu cheguei, e eu o levei quando ele teve que ir embora.” Era o dia 24 de dezembro.



sábado, 19 de janeiro de 2013

RETRATO 4


JOSENALDO ARAÚJO, 25.

De olhos fechados ele sente que o ônibus vai diminuindo a velocidade, mas não tem coragem de abandonar o sono. Teria que encarar a realidade. Por isso pressiona um pouco mais as pálpebras, tenta não ouvir nada do mundo e se agarra com todas as forças ao resto de sonho onde viveu as últimas horas. Isso funciona por alguns minutos, e as freadas e partidas repentinas só são percebidas lá no fundo da consciência. Mas então já não consegue se enganar, o sonho acaba na metade, e na escuridão do pensamento voltam à memória os últimos acontecimentos, redemoinho na alma, acidez na boca e no estômago, e a constatação de que sua vida é muito pior que o pesadelo. A saída de Maceió, a mãe, o irmão, o sangue. Por fim uma imagem nebulosa do futuro, medonho e áspero, o corte de cana-de-açúcar em algum povoado do interior de Minas Gerais. Aperta tanto os olhos dessa vez que chora.

O ônibus parou já faz algum tempo. Josenaldo Araújo desencosta a cabeça da janela e olha uma menina na poltrona ao lado. Respira profundamente. “Onde estamos?” “DF”, ela responde arqueando as sobrancelhas e desenhando um sorriso orgulhoso. “DF? O que é DF?” “Distrito Federal. Brasília, capital do Brasil!”, ela explica. Nessa hora qualquer coisa que lhe tenha passado pela cabeça o fez pedir licença, pegar a mochila e descer. “Vou ficar aqui.”

Amanheceu há pouco. A temperatura amena naquele período do ano lhe provoca uma sensação renovadora, tão estranha naquelas circunstâncias que voltaria a se lembrar dela por muitos anos. O ar do Cerrado que lhe entra pelos pulmões sai levando embora todo o peso que fez parte da sua vida desde os primeiros dias.

Cresceu acostumado a ver a mãe em desespero, sem saber como alimentar sete filhos, depois que o marido foi embora. Aos sete anos se juntou ao irmão mais velho, Raimundo de Araújo, na pescaria em jangada e na venda de laranjas nos sinais de trânsito em Maceió. O Mercado da Produção, onde vendiam os peixes que pegavam durante a madrugada na Praia de Pajuçara, ficava ao lado da CEASA, o centro de abastecimento da cidade. Os meninos costumavam barganhar as frutas mais baratas andando por corredores estreitos que logo acumulavam lama e lixo. Passavam o resto do dia nas ruas, às janelas dos carros, despertando insegurança e fúria, construindo o próprio ódio.

Josenaldo Araújo lembra uma noite, voltando para casa, quando somou suas moedas com as do irmão e o resultado não chegou a dois reais. Não tinha coragem de entregar aquilo à mãe, os irmãos mais novos esperando a comida em casa. Raimundo de Araújo foi lá e entregou. Mas em seguida saiu, bateu à porta de um temido morador da vizinhança e aceitou um antigo convite para trabalhar na entrega de envelopes de maconha, com a condição de que o primeiro pagamento fosse antecipado, e imediato. Voltou com pão e leite para casa. Impressionado, Josenaldo Araújo decidiu seguir o irmão no dia seguinte.

Aos 19 anos, o trabalho com a venda de drogas garantia uma boa renda, mas havia transformado a vida da família num inferno. A mãe implorava para que os filhos largassem tudo. Dizia que no passado atravessavam dias de fome, mas não conviviam com a morte rondando a própria casa. A essa altura Josenaldo Araújo já se acostumara a andar armado. Estava casado e tinha uma filha. E de fato sentia, ao menor barulho durante a noite ou nos percursos solitários pela rua, olhos e ouvidos vigilantes, que a morte o seguia de perto, aguardando a distração banal. Mas ele não enxergava uma saída. Não sabia como poderia simplesmente comunicar que estava largando tudo, e tudo ficar por isso mesmo. E ainda que ficasse, e ele sobrevivesse, como sustentaria a filha? A vida no sinal de trânsito, colecionando humilhações, era um peso que ele não suportaria carregar àquela altura.

Uma noite estava num bar da vizinhança com o irmão. Dois homens de terno se aproximaram com naturalidade, embora nunca fossem vistos por ali. O mais alto sentou ao seu lado. O outro ficou em pé e se posicionou de frente para Raimundo de Araújo, abrindo levemente as pernas e fincando as botas com firmeza no chão. Percebeu que um terceiro havia chegado de carro no mesmo instante, puxou o freio de mão e não se mexeu mais. Josenaldo Araújo tentou se levantar e sair devagar, calculando cada movimento. O que estava do seu lado não reagiu, mas apontou para Raimundo de Araújo e falou com a tranquilidade dos serviçais da morte: “O homem é esse aí.” Pensando que se tratava de policiais, Raimundo se colocou contra a parede com os braços para o alto. Pediu calma. O homem que estava de pé tirou a arma e disparou nas suas costas à queima-roupa. Josenaldo Araújo se surpreendeu com os tiros. Atônito, lembrou que o irmão estava desarmado. Voltou da porta do bar com seu revólver em punho. O homem que havia sentado ao seu lado atirou primeiro, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes. Caído, Josenaldo Araújo se colocou de bruços e buscou a porta de saída outra vez. Agora se arrastando numa ondulação de animal ferido que desenhava um caminho sinuoso de sangue no chão de cimento queimado, evidência que mais tarde a dona do bar fracassaria na tentativa de limpar. Nessa posição mais quatro tiros atingiram o seu corpo. Onze balas ao todo. Depois disso o atirador se levantou da cadeira, juntou-se ao que estava em pé e voltou a atirar, dessa vez em Raimundo de Araújo: 22 tiros.

A dona do bar socorreu os irmãos feridos. Josenaldo Araújo sentiu os médicos tirando as balas do seu corpo. Pediu que lhe aplicassem alguma coisa pra tirar a dor: uma bala no estômago era uma sensação insuportável.

Depois disso ele teve a impressão de uma pedra incomodando o seu pé. Deu um chute distraído para o lado e acabou empurrando o lençol, mas não estava deitado, estava reto, pairando no ar, ao lado da cama. Em cima dela, viu o corpo que já não lhe pertencia. Havia entrado em coma. Ficou assim por quatro dias. Depois, mais dez de isolamento, sem visitas. Nesse período, telefonou para casa e falou com a mãe. Perguntou pelo irmão. A resposta foi um choro descontrolado. A irmã mais nova tomou o telefone e disse que Raimundo de Araújo estava morto.

Foram dez dias na escuridão, preso à memória do irmão. Nas trevas, as recordações teciam-se. Técnicas de pescaria em Pajuçara, o malabarismo com as laranjas, o cuidado com a mãe, a fome que provocava o choro, o ódio contra os outros, a revolta com o destino. No quarto sem luz do hospital, sentia-se no túmulo do irmão, mas sem poder encontrá-lo.

No primeiro dia de visita, o pai apareceu. Josenaldo de Araújo não acreditou, era como se tivesse sido pego de surpresa mais uma vez. Mais uma vez ferido. Mas dessa vez reagiu. Para ele, era o pai que deveria estar morto. Porque pela lógica natural das coisas era o pai que deveria ter entrado para o tráfico se fosse necessário matar a fome da família. O irmão mais velho apenas havia tomado o seu lugar.

Quando ficou sozinha com Josenaldo Araújo, a irmã o acalmou. Disse que ele tinha que mudar a vida a partir daquele dia. Sugeriu que procurasse trabalho em outra cidade. Quando voltou para casa, a mulher reforçou a ideia. Não teriam outra chance. Poderia ser qualquer trabalho. Se fosse preciso, ela estava disposta a catar papelão pela rua em troca de qualquer moeda.

Josenaldo Araújo se convenceu. Poucos dias depois saiu com a roupa do corpo e quinhentos reais no bolso, as economias da mãe. Quando fechava os olhos, era para combater o ímpeto de ir atrás dos assassinos, e, mais do que isso, domesticar o espírito para o corte de cana em qualquer terreiro de exploração. A submissão contra a fúria. Entregaria a dignidade pela mulher e pela filha.

Deixou Maceió com a sensação de perda aumentada, era como se morresse também, perdendo a mãe, a irmã, a mulher e a filha. A viagem foi uma jornada insuportável para dentro de si mesmo. Encontrou as piores lembranças que havia reunido na vida.

Brasília representa uma mudança revolucionária na história de Josenaldo Araújo. Antes de descer do ônibus, ele já havia decidido ficar, mas somente quando pôs os pés no planalto central e respirou o ar do Cerrado, soube que havia tomado a decisão certa.

Estava na Rodoferroviária, comia um lanche e memorizava o endereço de um quarto para alugar por duzentos e cinquenta reais em Samambaia. Era metade de tudo o que tinha, mas resolveu apostar. O proprietário não quis alugar, ficou desconfiado. Um vizinho foi com a cara dele, convenceu o proprietário e emprestou a bicicleta para Josenaldo Araújo procurar emprego. Com três dias estava trabalhando como auxiliar de pedreiro. Com três meses trouxe a mulher e a filha para morar com ele. A segunda filha já nasceu por aqui, e hoje Josenaldo Araújo é operário com carteira assinada.

Narra sua história de dentro do Estádio Nacional, onde se dedica à reforma para a Copa do Mundo de 2014. São 18h, o sol ainda não se pôs e ele acabou de chegar para uma jornada de trabalho madrugada adentro. Está encostado ao lado dos galpões usados como vestuários pelos operários. O cigarro pende apagado no canto da boca. A caixa de fósforos está nas mãos, mas acendê-lo torna-se um ato de pouca importância durante a conversa, por isso constantemente adiado.

Josenaldo Araújo é um sujeito alto, magro, a pele de um tom duramente marcado pelo sol dos dias em que tirava sua sobrevivência do mar e do asfalto. Tem sobrancelhas grossas. O olhar meio oliva transparece vulnerabilidade, porque expõe a alma com sinceridade, e leva o interlocutor a um esforço desmedido na tentativa de imaginar aquela expressão a serviço do tráfico, com a obrigação de intimidar.

Josenaldo Araújo escapou à vida à qual havia sido preso com as amarras da fome e da violência, e cujo fim viria cedo, aos 19, com onze balas no corpo. Em algum momento ele tomou a história com as próprias mãos e mudou o seu destino. Salvou também a irmã. “Ela veio para Brasília em seguida e hoje trabalha na obra comigo.”

Ao fim das histórias mais profundas seguem-se os silêncios mais eloquentes. Depois que fala da irmã seus olhos param em qualquer canto da terra, ao lado e abaixo, e provavelmente vislumbram o passado, depois o presente e por fim ficam marejados. “Não sei o que me fez descer do ônibus na metade da viagem.”

Josenaldo Araújo ignora os olhares curiosos dos companheiros que passam, põe o cigarro na boca mais uma vez. Dessa vez risca um fósforo. A chama em vaga-lume revela traços do rosto já escondidos pelo anoitecer recente. E finalmente a fumaça cobre de sombras severas qualquer evidência da presença do operário. Josenaldo Araújo e a escuridão são agora uma coisa só.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

RETRATO 3


RILDO DIAS, 51.

Há uma espécie de peixe que vive nas profundezas das águas doces do Rio Negro. Uma vez por ano ele sobe a 20 metros da superfície, é o mais próximo que chega da luz do sol. Nesse período, um tipo de mergulhador especializado entra no rio com a missão de capturar esse peixe, adorado por colecionadores. Na época em que morava na Amazônia, Rildo era um desses mergulhadores.
Peixe de aquário foi uma das três grandes paixões que conduziram a vida de Rildo Dias até Brasília. Ele nasceu no Maranhão mas antes de completar um ano já morava no Rio de Janeiro. Aos 19 parou para ajudar a desmontar a lona de um circo, próximo à Central do Brasil, e acabou seguindo viagem com a trupe. Logo iria compor a banda que tocava ao vivo, substituindo o antigo baterista. Foi o primeiro contato profissional com a sua primeira e mais fiel paixão: a música.

Depois de se apresentar em Belém do Pará, o grupo seguiu para a Guiana Francesa, mas como Rildo viajava sem autorização dos pais, o dono do circo não arriscou sair do país com ele. Foi uma profunda decepção. A Guiana Francesa passaria a ser lembrada como um desejo não realizado. Até que bem mais tarde, em Fortaleza, ele aceitaria o desafio de seguir numa travessia de seis meses em barco a vela, como cozinheiro. O destino: a Guiana Francesa. Mas isso é outra história.
O fato é que Rildo ficou no Norte, casou, teve filhos e integrou bandas de diferentes ritmos. Até que sua mulher morreu. E diante da possibilidade de ver os netos criados apenas pelo pai, o sogro fez uma proposta. “Como eu era meio maluco, eles sugeriram ficar com os meninos e eu poderia seguir viagem por aí. Achei sensato e aceitei. São pessoas mais corretas, todos daquela igreja... como chama?!”

Então Rildo acaba chegando a Diamantina, Minas Gerais, e alguém lhe apresenta  a sua terceira paixão: os diamantes. Foi por causa dela que Rildo veio parar em Brasília, representando uma empresa mineira. Isso faz seis anos. De lá pra cá, Rildo divide o tempo entre o comércio de diamantes e a música.
As duas atividades acontecem no CONIC. “São lá que estão meus amigos, meus contatos.” Acredita que em Brasília encontrou o melhor lugar para trabalhar, além de ótimas companhias. “Brasília é uma cidade acolhedora. Só lamento que o Estado permita que tanta gente viva nas ruas, completamente dependente das drogas. Vejo isso de perto.”

No dia 1° de janeiro de 2013, Rildo completou 51 anos. Entre os seus planos está a gravação de um CD e a realização de um sonho: construir uma casa numa remota ilha do Maranhão. "Vai ser a minha aldeia. Vou levar os filhos com as novas famílias e a minha nova esposa (que por enquanto mora em Rondônia)". Se o destino se cumprir, o andarilho descansará no mesmo berço onde nasceu.

RETRATO 2


ÍTALA DE SOUSA, 30.

Sua mãe arruma o seu cabelo, confere o vestido novo por todos os lados, depois segura sua cabeça com as duas mãos e repete ansiosa as recomendações: silêncio, modos, não responda. A menina tem quinze anos, um bebê recém-nascido e a obrigação de não assustar a família do Lago Sul, com quem tem entrevista marcada para um emprego.

No caminho entre São Sebastião e a casa do ex-governador, Ítala se dá conta de que refaz os passos da mãe: acaba de sair de Salvador grávida para tentar mudar a vida em Brasília, como doméstica. Arrepende-se da lembrança na hora, porque agora chegará ainda mais triste na casa da patroa, mesmo assim acaba cedendo de vez à memória dos pequenos traumas.

Primeiro a avó. Um dia, por volta dos cinco anos, ela escuta a avó comentar que os caminhoneiros deviam ser pais muito ausentes, porque vivem viajando. A partir daí, a festa do dia dos pais na escola passou a ser mais curta, porque começava com o deboche dos colegas que, protegidos nos braços dos seus, apontavam pra ela sozinha, e terminava com o seu desabafo: “Olha aqui, o meu pai é caminhoneiro!”.

Depois vem o pai. Ela tinha oito anos e sua mãe tentou aproximá-la de um pai desconhecido e arredio. Ele era um oficial de justiça, tinha uma situação financeira melhor, mas desprezava a filha. A menina aguardaria sem pressa o aniversário de 21 anos, quando então conheceria uma Defensoria Pública e abriria um processo judicial contra ele. Mas naquele ônibus isso ainda não passava de um plano.

Ítala desce num ponto e anda pelas quadras do Lago Sul um tanto perdida, não se entende com os códigos das placas de Brasília. Um carro reduz a velocidade para entrar na rua, ela se aproxima pela porta do passageiro e pergunta ao motorista onde fica. Mas sua pergunta é interrompida pela janela que se fecha sem pressa porque o automático não é acionado pela impaciência do homem ao volante. O carro segue o seu caminho.

Como uma peça erguida pelo jogador num tabuleiro de xadrez, em que todos os quadrados são iguais, ela é colocada de repente e sem saber como no endereço certo. Seu rosto toca a grade de ferro cinza e frio, olha desconfiada e percebe um movimento no terraço, mas só depois que já criou coragem para tocar a campainha, entende que é o motorista do carro que está lá dentro. Com o sinal sonoro, seus olhares se reencontram. Xeque! Uma voz de mulher grita "quem é" e o homem responde alto, muito mais para a pessoa de fora que para a de dentro: “Ninguém. É só uma neguinha querendo esmola”.

Era o ex-governador. A ex-primeira-dama, se é assim, aparece e finge que não ouviu o marido, ou que aquilo não tinha importância. Mas a neguinha, que tentava não incomodar, tenta agora não existir, mãos que apertam a grade de ferro, começa a suar, fica trêmula, chora pra dentro e pensa na mãe. Por isso entra, escuta, baixa a cabeça e vai embora.

Ítala conta o caso para a mãe, que agora recomenda esquecer o assunto porque afinal a ex-primeira-dama é amiga da freira do Convento das Carmelitas, onde ela trabalha, e de onde vem o único salário-mínimo que entra naquela casa.

Muito tempo passou. Dez anos talvez. Ítala começou uma faculdade de administração, conseguiu um estágio em um órgão federal, matriculou o filho em um colégio particular, processou o pai e passou a frequentar as oficinas de uma ONG internacional de cultura Rastafári em São Sebastião. 

É provável que em algum um curto minuto desses anos, moldada por episódios sutis de preconceito mas também por muitas alegrias, Ítala tenha parado para localizar na memória o momento exato em que mudou. Porque ela mudou. Algo como uma transformação centrada numa autoestima reveladora do seu poder. Talvez tenha sido o  exemplo da liderança de Zumbi, ou a primeira vez que viu os discursos de Martin Luther King e Malcolm X, que falavam em inglês, mas que tinham naquela expressão e no punho erguido uma mensagem universal de resistência. Talvez a mensagem clara e alegre de Bob Marley: "Levante e lute!" Sim, a música tem mais a ver com ela.

Ítala usava roupas coloridas e um penteado Rastafári caprichado quando reencontrou por acaso o ex-governador. Era um aniversário no Convento das Carmelitas, e, entre os convidados, a ex-primeira-dama, curiosa ou incomodada, quis saber quem era ela. Ítala chegou bem perto para não perder o momento do choque nos olhos da mulher, e respondeu sem piscar que era aquela neguinha que o ex-governador havia humilhado. Depois que confirmou as sobrancelhas arqueando, as pupilas dilatando e o queixo num movimento lento em direção ao chão, se retirou do recinto porque tinha um orgulho a defender.

Sua mãe não perdeu o emprego, a essa altura já tinha certificado de técnica de enfermagem e a freira dependia dela.

Para Ítala, a Torre de TV se tornou um lugar especial de Brasília desde que ela levou o filho para passear pela cidade e viu como ele se impressionou com o lugar. Mas ela gosta mesmo é de água, e olhando o Lago Paranoá sempre que faz sua travessia diária de São Sebastião para o Plano Piloto, pela Ponte JK, Ítala deseja profundamente estar perto do mar.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

RETRATO 1



LENIR DE LIMA, 50.

Lenir é uma figura grande. Vaga pelo Setor Bancário Sul com um saco de farinha pendurado pelas costas e um caminhar pesado e incerto, que entrega algum velho problema com os pés.

Para num corredor estreito ao lado do Banco do Brasil, colocando-se no meio da passagem, o saco agora jogado ao chão, mãos na cintura e cabeça erguida, assim como se tivesse alguma revelação profética a fazer, e a maré de pessoas que segue na sua direção é obrigada a se dividir na bifurcação do seu corpo. Todos desviam, ninguém dá dinheiro. Mas ele garante que, como acontece todos os dias, receberá o suficiente para passar a noite no hotel do Seu Barriga, de endereço impreciso, e ainda desfrutar de uma refeição. É assim desde 1994.

Lenir é um gigante que nasceu no meio do concreto há cinqüenta anos. Prefere a Brasília de hoje àquela do início “quando não tinha nada”. Seu pai era massagista em um clube de futebol e sua mãe foi ficando doente até desaparecer. Quando? Só lembra que foi na época de Bebeto e Romário, e, segundo ele, isso diz muita coisa. Discretamente sugere algo como uma máfia no futebol, responsável entre outras coisas pelo desaparecimento da mãe. O que importa é que depois disso algumas rupturas aconteceram, no cérebro e no coração.

As referências de Lenir são assim incomuns. Sabe que já viajou a São Paulo, mas não lembra como foi. Já trabalhou em fábricas, em canavial e esteve preso por bater numa pessoa. “Foram eles que mandaram.” Quem? “Esses da luz amarela que vivem tirando a paciência da gente.” E sua indignação atropela o absurdo e tudo parece ser de conhecimento geral. As vozes da luz amarela, ao que parece, levaram Lenir a freqüentar clínicas psiquiátricas. “Eles sabem que sou doente.” Ele, às vezes sabe, às vezes não.

Anuncia um Novo Brasil que está sendo construído em algum lugar “depois de Belém”. “Muitos já foram pra lá.” E você, Lenir, gostaria de sair de Brasília? “Brasília é uma cidade violenta, mas eu tenho que ficar aqui porque o dono do banco está me devendo uns documentos. Mas se pudesse eu gostaria de mudar para o meu próprio planeta, um que eu mesmo pudesse construir.”

Lenir não sabe, mas entre as jornadas pelo Setor Bancário Sul e as noites de sono no hotel do Seu Barriga, ele já vive um pouco no seu próprio mundo.