segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

RETRATO 2


ÍTALA DE SOUSA, 30.

Sua mãe arruma o seu cabelo, confere o vestido novo por todos os lados, depois segura sua cabeça com as duas mãos e repete ansiosa as recomendações: silêncio, modos, não responda. A menina tem quinze anos, um bebê recém-nascido e a obrigação de não assustar a família do Lago Sul, com quem tem entrevista marcada para um emprego.

No caminho entre São Sebastião e a casa do ex-governador, Ítala se dá conta de que refaz os passos da mãe: acaba de sair de Salvador grávida para tentar mudar a vida em Brasília, como doméstica. Arrepende-se da lembrança na hora, porque agora chegará ainda mais triste na casa da patroa, mesmo assim acaba cedendo de vez à memória dos pequenos traumas.

Primeiro a avó. Um dia, por volta dos cinco anos, ela escuta a avó comentar que os caminhoneiros deviam ser pais muito ausentes, porque vivem viajando. A partir daí, a festa do dia dos pais na escola passou a ser mais curta, porque começava com o deboche dos colegas que, protegidos nos braços dos seus, apontavam pra ela sozinha, e terminava com o seu desabafo: “Olha aqui, o meu pai é caminhoneiro!”.

Depois vem o pai. Ela tinha oito anos e sua mãe tentou aproximá-la de um pai desconhecido e arredio. Ele era um oficial de justiça, tinha uma situação financeira melhor, mas desprezava a filha. A menina aguardaria sem pressa o aniversário de 21 anos, quando então conheceria uma Defensoria Pública e abriria um processo judicial contra ele. Mas naquele ônibus isso ainda não passava de um plano.

Ítala desce num ponto e anda pelas quadras do Lago Sul um tanto perdida, não se entende com os códigos das placas de Brasília. Um carro reduz a velocidade para entrar na rua, ela se aproxima pela porta do passageiro e pergunta ao motorista onde fica. Mas sua pergunta é interrompida pela janela que se fecha sem pressa porque o automático não é acionado pela impaciência do homem ao volante. O carro segue o seu caminho.

Como uma peça erguida pelo jogador num tabuleiro de xadrez, em que todos os quadrados são iguais, ela é colocada de repente e sem saber como no endereço certo. Seu rosto toca a grade de ferro cinza e frio, olha desconfiada e percebe um movimento no terraço, mas só depois que já criou coragem para tocar a campainha, entende que é o motorista do carro que está lá dentro. Com o sinal sonoro, seus olhares se reencontram. Xeque! Uma voz de mulher grita "quem é" e o homem responde alto, muito mais para a pessoa de fora que para a de dentro: “Ninguém. É só uma neguinha querendo esmola”.

Era o ex-governador. A ex-primeira-dama, se é assim, aparece e finge que não ouviu o marido, ou que aquilo não tinha importância. Mas a neguinha, que tentava não incomodar, tenta agora não existir, mãos que apertam a grade de ferro, começa a suar, fica trêmula, chora pra dentro e pensa na mãe. Por isso entra, escuta, baixa a cabeça e vai embora.

Ítala conta o caso para a mãe, que agora recomenda esquecer o assunto porque afinal a ex-primeira-dama é amiga da freira do Convento das Carmelitas, onde ela trabalha, e de onde vem o único salário-mínimo que entra naquela casa.

Muito tempo passou. Dez anos talvez. Ítala começou uma faculdade de administração, conseguiu um estágio em um órgão federal, matriculou o filho em um colégio particular, processou o pai e passou a frequentar as oficinas de uma ONG internacional de cultura Rastafári em São Sebastião. 

É provável que em algum um curto minuto desses anos, moldada por episódios sutis de preconceito mas também por muitas alegrias, Ítala tenha parado para localizar na memória o momento exato em que mudou. Porque ela mudou. Algo como uma transformação centrada numa autoestima reveladora do seu poder. Talvez tenha sido o  exemplo da liderança de Zumbi, ou a primeira vez que viu os discursos de Martin Luther King e Malcolm X, que falavam em inglês, mas que tinham naquela expressão e no punho erguido uma mensagem universal de resistência. Talvez a mensagem clara e alegre de Bob Marley: "Levante e lute!" Sim, a música tem mais a ver com ela.

Ítala usava roupas coloridas e um penteado Rastafári caprichado quando reencontrou por acaso o ex-governador. Era um aniversário no Convento das Carmelitas, e, entre os convidados, a ex-primeira-dama, curiosa ou incomodada, quis saber quem era ela. Ítala chegou bem perto para não perder o momento do choque nos olhos da mulher, e respondeu sem piscar que era aquela neguinha que o ex-governador havia humilhado. Depois que confirmou as sobrancelhas arqueando, as pupilas dilatando e o queixo num movimento lento em direção ao chão, se retirou do recinto porque tinha um orgulho a defender.

Sua mãe não perdeu o emprego, a essa altura já tinha certificado de técnica de enfermagem e a freira dependia dela.

Para Ítala, a Torre de TV se tornou um lugar especial de Brasília desde que ela levou o filho para passear pela cidade e viu como ele se impressionou com o lugar. Mas ela gosta mesmo é de água, e olhando o Lago Paranoá sempre que faz sua travessia diária de São Sebastião para o Plano Piloto, pela Ponte JK, Ítala deseja profundamente estar perto do mar.

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